Objetivo é que drogas possam não só tratar, mas também evitar a doença
Imagine uma substância que, ao entrar no corpo, é capaz de tratar um tumor maligno já existente e, também, prevenir que o paciente volte a desenvolver a doença. Essa terapia genética que faz as vezes de “vacina” é o que buscam pesquisadores de todo o mundo, alguns com resultados já promissores em laboratório. Um desses estudos, com foco em câncer de pele, é desenvolvido há seis anos no Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), em Campinas, São Paulo. Agora, os cientistas de lá conseguiram comprovar em camundongos que a “vacina” criada por eles conseguiu curar a doença em 30% dos casos e que, de todos os animais tratados, 40% não voltaram a desenvolver câncer mesmo depois de tomar injeções de células com o tumor. Os resultados foram publicados na revista científica “Frontiers in Immunology”.
O tumor investigado no estudo é o melanoma, tipo mais agressivo de câncer de pele. Aliás, grande parte das pesquisas que trabalham com terapia genética para estimular o próprio sistema imunológico a eliminar o câncer centram seus esforços no melanoma. Isso acontece porque, embora ele represente apenas 3% dos cânceres de pele, tem alto risco de gerar metástase — quando o tumor se espalha para outro órgão.
TRÊS LINHAGENS COMBINADAS
Pesquisador do CNPEM e um dos autores do estudo, Marcio Chaim Bajgelman explica que células de melanoma foram cultivadas em laboratório e modificadas geneticamente para que sua superfície passasse a ter imunomoduladores. São eles que tornam as células reconhecíveis para o sistema imunológico, que, assim, pode atacá-las. Uma forma de fazer com que esse efeito fosse mais forte foi combinar três linhagens diferentes de células tumorais, cada uma com um tipo de imunomodulador.
— Essa combinação foi muito significativa e essencial para que vários camundongos terminassem o estudo, após um ano de acompanhamento, sem vestígio do tumor — diz Bajgelman. — O novo caminho dos tratamentos oncológicos é, justamente, a combinação de imunomoduladores. Isso dá origem a “vacinas” derivadas da própria célula tumoral.
Especialista em bioquímica e também doutor em biotecnologia, ele destaca que o grande avanço dessa pesquisa foi indicar a possibilidade de a droga criar uma memória imunológica: o organismo do paciente tratado com ela “se lembra” de como atacar as células de câncer, o que impede que o tumor volte a aparecer.
Essa memória não foi observada em todos os camundongos “vacinados”, mas em 40%, índice considerado expressivo pelo pesquisador.
— O grande diferencial deste trabalho em relação a outros de mesmo tipo é indicar um efeito de duração de longo prazo. Quando os animais foram “redesafiados”, ao injetarmos neles células de melanoma, muitos não desenvolveram o tumor. O tratamento aumentou a imunovigilância do organismo, a capacidade de reconhecer e inibir doenças — afirma Bajgelman.
Segundo ele, a mesma lógica pode ser usada para outros tumores que não os de pele. O próximo passo é testar o funcionamento da “vacina” em células de câncer retiradas de pacientes, por biópsias, por exemplo. Até agora, os testes foram apenas com células tumorais cultivadas em laboratório.
— Devemos começar ensaios em células humanas nos próximos meses — acredita ele.
Para a analista de marketing Patrícia Miranda, a existência de uma “vacina” assim seria motivo de alívio. Ela foi diagnosticada há três meses com melanoma grau 3 — o nível de agressividade é medido numa escala de 1 a 5. Incomum para a idade dela, que tem só 26 anos, esse tipo de câncer é mais frequente em pessoas acima dos 60. E, quanto mais jovem se é, mais rapidamente precisa ser feita a cirurgia de retirada, porque o risco de metástase é ainda maior. Patrícia se submeteu à operação menos de um mês após o diagnóstico.
— Tive que fazer o que chamam de cirurgia de ampliação, retirando não só a pinta, mas toda pele ao redor, que tem risco de já ter células cancerosas. Isso é para evitar ao máximo que haja metástase ou recidiva — conta ela.
ATENÇÃO A PINTAS SUSPEITAS
Depois do susto, a jovem está bem: não precisou de quimio, nem radioterapia. Ela necessita, a partir de agora, realizar exames periodicamente e monitorar outras duas pintas suspeitas na barriga.
— A pinta que eu retirei já estava crescendo e ficando mais escura desde que eu tinha 20 anos. O diagnóstico foi um aprendizado, para que eu fique mais atenta a qualquer mancha suspeita e inclua o protetor solar na minha rotina. Se eu não tivesse deixado tanto tempo passar, talvez o tumor não tivesse se desenvolvido — ressalta.
Para o coordenador do Departamento de Cirurgia e Oncologia da Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD), Curt Mafra Treu, a pesquisa desenvolvida em Campinas é promissora, mas são necessários mais estudos que haja certeza da existência de uma memória imunológica. Ele destaca, também, que é importante não confundir esse tipo de droga com uma vacina convencional.
— Não é um tratamento preventivo, não será aplicado em uma pessoa saudável — ressalta. — Já houve diversos estudos de melanoma com vacinas. Infelizmente, a maioria deu negativo. Mas esse campo nos deixa muito animados. É o futuro do tratamento oncológico.
Também segundo Andreia Melo, oncologista clínica da Oncologia D’Or, as pesquisas têm caminhado para a elaboração de terapias que estimulem de alguma forma o sistema imunológico. Tanto por medicamentos que ajudem o organismo a reconhecer características do tumor, quanto por “vacina”.
— O melanoma é o tumor que mais tem alterações somáticas, então ele forma muitos antígenos e isso dá mais possibilidades de reconhecê-lo. Por isso ele é tão estudado na busca de vacinas — diz ela. — Esse é o caminho, mas deve levar ainda uma década até algo assim ser aprovado pelos órgãos regulatórios.
Fonte: O Globo, 23/12/2017